“Uma vez, em plena sala de cirurgia, com as horas e minutos
castigando os pestilentos ensejos que a hora urgia, de viés a
porta a luz mostrou, com as roupas partidas, os pés descalços e o
silêncio do corpo imberbe, caminhos se abriram e a fuga se desenhou,
fui pelos corredores, como rato nas sombras inerte, portas se abriram
na inconsequência de ato tão breve, e no silêncio, velas e fachos
brilhantes anunciaram-me fora, fora do hospital, fora da truculência
das dores deste ambiente infecundo, faminto por não ser algoz de
lâminas e anzóis a perscrutar minhas entranhas, enfadado de ser
vítima dessa nojenta biologia humana.
Com um lapso certeiro, as quadras ficaram pra trás, e de um monte
alto, frio e faceiro, vi o hospital ao longe, como um postal,
rabiscado de cores sádicas, carros e monólitos febris jaziam em
suas calçadas, gritos ecoavam, mãos tateavam a introvertida virtude
de nossa natureza calejada, e em um impulso, entre o deixar o
calvário e o voltar pro patíbulo, vi-me com a seguinte conclusão :
Não
haverá retorno, nada será como antes,
vou
ou fico nesse embrolho,
crio
coragem e sigo adiante ?
Minha
vida por um fio, as dores lancinantes
e
a cada instante, a razão não me comove,
leio
meu rosto no reflexo da neblina em torno
e
penso : corre ?
Retorno
pro destino certeiro, pra faca de um
médico,
filho da purga, açougueiro,
aceito
meu destino, sento na relva, e perdôo
os
desatinos de ser breve e arengueiro ? Qual escolho ?
E num piscar de olhos, entre o certo ou filosófico, sedo-me novamente
na sala de cirurgia, aguardando, óbvio, que a dissecação fosse
breve, pois no ímpeto da fuga, esqueci a tátil verdade, não era um
direto daquele reles fedelho, decidir sobre a vida ou a morte, outros
tiveram claro, menos sorte, meus pais não mereciam fosse um espírito
errante, sofrimento demasiado pra quem foi só egoísmo, num ato
infantil e desumano… e nem era pra tanto, só perdi-me por alguns
instantes ? ”
A vida nunca me pertenceu, mesmo quando quis que assim o fosse.
gianovik
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