quarta-feira, 24 de abril de 2013

Apêndice




“Uma vez, em plena sala de cirurgia, com as horas e minutos castigando os pestilentos ensejos que a hora urgia, de viés a porta a luz mostrou, com as roupas partidas, os pés descalços e o silêncio do corpo imberbe, caminhos se abriram e a fuga se desenhou, fui pelos corredores, como rato nas sombras inerte, portas se abriram na inconsequência de ato tão breve, e no silêncio, velas e fachos brilhantes anunciaram-me fora, fora do hospital, fora da truculência das dores deste ambiente infecundo, faminto por não ser algoz de lâminas e anzóis a perscrutar minhas entranhas, enfadado de ser vítima dessa nojenta biologia humana.

Com um lapso certeiro, as quadras ficaram pra trás, e de um monte alto, frio e faceiro, vi o hospital ao longe, como um postal, rabiscado de cores sádicas, carros e monólitos febris jaziam em suas calçadas, gritos ecoavam, mãos tateavam a introvertida virtude de nossa natureza calejada, e em um impulso, entre o deixar o calvário e o voltar pro patíbulo, vi-me com a seguinte conclusão : 


Não haverá retorno, nada será como antes,
vou ou fico nesse embrolho,
crio coragem e sigo adiante ?

Minha vida por um fio, as dores lancinantes
e a cada instante, a razão não me comove,
leio meu rosto no reflexo da neblina em torno
e penso : corre ?

Retorno pro destino certeiro, pra faca de um
médico, filho da purga, açougueiro,
aceito meu destino, sento na relva, e perdôo
os desatinos de ser breve e arengueiro ? Qual escolho ?


E num piscar de olhos, entre o certo ou filosófico, sedo-me novamente na sala de cirurgia, aguardando, óbvio, que a dissecação fosse breve, pois no ímpeto da fuga, esqueci a tátil verdade, não era um direto daquele reles fedelho, decidir sobre a vida ou a morte, outros tiveram claro, menos sorte, meus pais não mereciam fosse um espírito errante, sofrimento demasiado pra quem foi só egoísmo, num ato infantil e desumano… e nem era pra tanto, só perdi-me por alguns instantes ? ”

A vida nunca me pertenceu, mesmo quando quis que assim o fosse.

gianovik

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