quinta-feira, 30 de maio de 2013

Sóis






Sereno,
vezes inquieto,
senil ou criativo,
Tanto faz.
Basta ser pleno
verdadeiro
completo.
A matéria pode
ser poeira ou aço,
não importa a consistência,
flua
complete o seguimento.
Aprenda
sofra
levante
reconstrua-se em incontáveis sóis,
só o brilho não irá soldar,
perdas
temores
comiserações
a teia interna clama e alinhava,
reconecta-o ao convés da vida
e lança-te em mar tempestuso. Sempre.


gianovik

terça-feira, 28 de maio de 2013

Verbo Falar







Tenho medo, de quando o verbo me falta.
Somem-se as pernas, o gás dos pulmões,
a engenharia das mãos, o brilho ocular
a cadência de todas sensações.


Escoasse tudo, só não a avidez da fala
do ouvir, permear, lacear a naturalidade
a eloquência da expressão, o retumbar articulado
na intensidade frisar os sons.

Nada enraíza mais, do que o amor ritmado,
o desejo esculpido em livros,
a ideia furtiva na poesia,
os versos descoordenados.


Tudo pouco marcado.
Mas nesta empatia, num último esforço
marcar em brasa, só com palavras
almas sedentas por cor.



gianovik

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A Lenda da Solidão





 
Das coisas que se descobre sozinho, uma das mais interessantes é a alegria fortuita de estar vivo.

Costumava em minhas férias caminhar horas e horas pelas praias do Rio Grande do Norte. Na casa de praia onde passei mais da metade de minha infância nas férias, saia a passear por dunas e falésias a contemplar o vento, a areia, os pequenos animais que se escondiam em suas tocas, e percebia como o fluxo da vida é inerente e totalmente amorfo a nossa presença. Sentava as vezes por horas no topo de uma duna a ligar ondas umas as outras pra compreender a lógica dos oceanos. Imaginava a hora que golfinhos saltassem e eles, quase nunca vinham. 

Era intensa a vida ao meu redor.

Barcos, velas, pequenas fragatas e as vezes ao largo, imensos navios; vez ou outra crianças passavam brincando. As horas se perdiam em frações de pensamento e muitas vezes voltei com o sol se pondo. Não havia solidão. Havia sim poesia nesta comunhão com a natureza. Era belo demais pra ser real, e de tão belo o sol não me queimava, a sede não afligia muito menos o calor da areia castigava meus pés.  Deitava na sombra de um coqueiro e de soslaio contemplava o sol. Naquela íris tão jovem o ato de enfrentar cara a cara o sol nunca me trouxe sequelas ! Ficava turvando a vista a observar anéis de fogo flutuando e esguichando sua onipotência pelo cosmo.

Numa dessas caminhadas, alguns quilômetros ao Norte da praia de Touros, encontrei uma construção inusitada. Uma antiga capela já abandonada e em ruínas. Na minha curiosidade juvenil fui aproximando-me aos poucos e ao contemplar seu interior, percebi que no centro da capela ainda residia um carcomido altar de pedra, nada mais de bancos, ornamentos ou pinturas religiosas nas paredes desgastadas. No centro da igreja reinava imponente uma imensa castanheira. Como que plantada pelos anjos, a árvore irrompia sobre o teto em escombros, fazia as vezes de telhado rústico. Como já era próximo do fim do dia o sol entrecortado pelas folhas e pelo sutil balé produzido pelo vento, fazia um estranho ritual de luzes naquele ambiente. O sopro recortado pelas paredes esburacadas perfazia seu cântico melódico. Era um ritual da natureza. Era uma ode a minha presença. E sentei pra presenciar esse pequeno culto ecumênico.

Fechei os olhos e pedi à vida sua benção.

Senti nesse instante a verdade extrema. Nunca poderei estar só.

Muitas vezes nessas minhas caminhadas fui questionado por tios e primos o por quê de ser assim tão isolado. Eu ? Isolado ? Será que não conseguem perceber a magnitude da vida que está impregnada em cada canto, célula e suspiro ao nosso redor ?

Naquela igreja eu vislumbrei um passado de almas devotas, crenças decanas, amores perdidos e sonhos realizados em questão de segundos.

Séculos se passaram na minha cabeça e seres que ali realizaram suas orações, súplicas e constrições, me sopraram o único predicado real : “Você nunca estará só !”

E quando por um desleixo ou capricho a sensação de solidão retorna a minha existência, me sento mentalmente aos pés daquele altar, fecho os olhos e escuto a canção que vem da orquestra excepcional que Deus nos equipou ao nascer : Eu escuto a música que vem do espírito. E o mundo volta a me pegar pelas mãos para caminharmos juntos.


gianovik

Rejeição





                   Hoje vou abrir espaço para uma reflexão de Elisabeth Cavalcante que creio ser bastante edificante para a vida de muitas pessoas, responde em poucas linhas comportamentos e atitudes que muitos não sabem identificar a origem ou seu significado. Boa leitura !

 
"O amor é o mais importante combustível para a nossa vida. Ele nos nutre e fortalece nosso ser, tornando-os fortes para enfrentar qualquer desafio que a vida nos apresente.


Mas, quando este alimento não nos é dado na medida exata, principalmente no inicio de nossas vidas, a autoconfiança e o sentido de valor que nos atribuímos pode ficar seriamente comprometido.


Desde muito cedo aprendemos o prazer que o amor e a aprovação de nossos pais podem nos proporcionar, e percebemos como a falta desse amor é dolorosa.


O sentimento de rejeição por parte da mãe ou do pai é, infelizmente, muito comum neste mundo em que os seres humanos, em sua grande maioria, ainda não vivenciam o estado de equilíbrio ideal para formar uma família.


A falta de maturidade e preparo para a importante tarefa de criar um filho, está na raiz do sentimento de rejeição. Dificuldades materiais, insegurança na relação afetiva e problemas emocionais não resolvidos podem fazer com que um filho, que deveria ser motivo de alegria e realização interior, acabe sendo recebido como um fardo pesado demais.


Para muitas pessoas este sentimento é inconsciente e nem sempre percebido objetivamente. Mas a criança rejeitada, na maioria das vezes acaba atribuindo a si a culpa pelo fato de não ser amada, e introjeta um sentimento de que não tem qualidades suficientes para merecer esse amor.


Como as emoções e percepções de nossa infância acompanham-nos ao longo da vida, continuamos, na idade adulta, carregando os sentimentos da criança que fomos um dia. A falta de amor por parte dos pais acaba fazendo com que a pessoa se recuse a amar a si mesma, por achar que não é merecedora.


Ao mesmo tempo, segue faminta, carente de atenção, aceitando qualquer migalha que alguém se disponha a lhe dar. A carência está por trás de muitas relações afetivas infelizes, já que a ânsia por estabelecer um relacionamento afetivo, faz com que as pessoas ignorem os sinais que a vida apresenta, de que aquela relação não será capaz de preencher seu vazio interior.


Para sair de tal labirinto são necessários vários passos: em primeiro lugar libertar-se do sentimento interior de culpa, e perceber que as causas da rejeição não estão relacionadas com ela, mas sim com dificuldades e bloqueios daqueles que a rejeitaram.


O segundo, e mais importante passo, é perdoar. Por mais difícil que seja, esta etapa do processo é essencial para que a libertação se concretize. Aprender a ver os próprios pais como seres em evolução, com fragilidades, bloqueios e limitações é a única forma de conseguir ter por eles a compaixão necessária para o exercício do perdão.


O próximo passo é praticar, diariamente, o amor por si mesmo, esforçando-se por perceber objetivamente as próprias qualidades e aceitar-se exatamente como se é.


Quando conseguimos nos amar e nos nutrir emocionalmente, tornamo-nos livres para estabelecer relacionamentos afetivos baseados no desejo de compartilhar, e não mais na necessidade de termos preenchido nosso vazio interior."


Elisabeth Cavalcante



domingo, 26 de maio de 2013

Giz de Cera






É numa dessas noites sem inspiração que me dou ao luxo de postar pelo celular.


 Revolvo o vazio, como se vazio possuísse conteúdo, buscando palavras pra expressar o insosso propósito de não ter absolutamente o que escrever. 


Queria a conspiração tão comum, quase emanada de outros mundos pra escrever o mais demente dos poemas. Contos e pensamentos edificantes nem sob a mira de uma arma ou sobre um cadafalso prestes a destampar estalando o pescoço. É o puro estado de catatonia querer escrever e não ter o promissor delírio da compulsão literária. Fico pensando nos escritores que em suas maquinas mecânicas do século passado, enrolavam a primeira pagina em suas traquitanas medievais e escreviam o clássico enunciado : - Era uma vez .... e ponto finito. A mente, o coração e o espirito como de comum conchavo traiam por completo sua obra sequer esboçada. Mas quem disse que tudo que se produz tem a obrigatoriedade de ser um marco, um divisor de conceitos ou mesmo um livro capaz de modificar o comportamento de gerações ? A verdade é que nada é mais edificante para o escritor, por mais que pareça contrário ao seu propósito, que o retumbante fracasso de uma publicação.

 Estranho concordo, mas possui a formula secreta de expor a falibilidade, a esporádica ausência de conteúdo, e principalmente, a natureza comum de um simples homem que por alguns momentos, dias ou alhures ao tempo, simplesmente desaprendeu a escrever. Foi conduzido por esse "buraco negro" à sala colorida de cadeiras miúdas de seu antigo jardim de Infância, onde lhe puseram o giz de cera nas mãos ainda inaptas e iniciou-se o trabalho das primeiras curvas e retas que formariam o seu intrincado dialeto.


É um processo necessário esvair-se de sua própria cultura e retroceder a suas origens pedagógicas, necessário talvez por que em algum momento de nossa existência, algum fato importante, uma peça mal encaixada, um caderno de caligrafia incompleto, uma brincadeira com final infeliz, um olhar de desagravo, deixou de compor a cadeia de informações que estruturou toda uma biblioteca mental. Buscar essas peças e como encontrar o dominó que faltava para permitir que a trilha de peças possa ter inicio, meio e fim na sua seqüência de desabamentos. Típica brincadeira de criança, mas frustrante quando falha por algo mal elaborado.


Para o autor a verdade é que é melhor escrever algo que produza efeito inócuo, que talvez não enseje o desejo do leitor sequer terminar a leitura, por tédio ou desinteresse, do que aceitar a  crueldade de por alguns instantes, desaprender como manusear um simples giz de cera.


Voltar ao principio, é descobrir que a inspiração não é um mecanismo automático ou uma maquina mecânica com suas engrenagens martelando letras. Inspiração vem quando a alma se preenche e quer transbordar, e a alma só derrama sua essência quando o coração assim a comanda.


Máquinas são máquinas. 

Somos apenas pincéis induzidos a soletrar a beleza da criação.




gianovik





sábado, 25 de maio de 2013

Ensaio de um Penitente II






Eu nunca quis tornar público nada daquilo que escrevo. Muito pelo contrário, sempre rabisquei meus textos e esboços de poemas em cadernos de escola e os guardava para mim. Tinha muitas idéias e como não encontrava na minha infância ninguém que as compreendessem, era mais fácil guardá-las como memórias ou mero registro lacrado de meus pensamentos.

Aprendi a gostar cedo de poesias. Lia muito Augusto dos Anjos e sempre fui fã incondicional de Olavo Bilac e Fernando Pessoa. Eram poetas que nas suas linhas nitidamente introspectivas se assemelhavam a minha própria sensação de exclusão do mundo.

Não sou poeta admito, muito menos escritor ou romancista, não vivi a plenitude da vida para ter manancial descritivo ou imaginação saturada suficiente para tanto, apenas faço esboços baseados na minha limitada estadia por essas bandas.

Acho que a idade me libertou do senso do ridículo, permitindo que me expusesse em público com toscos textos e poesias mornas e ensaiadas antes de uma estréia digna.

Muitas vezes penso que escrevo por necessidade masoquista de me expor ao ridículo. Sou um adulto desdobrando o dom secundarista de fazer redações em ensaios floreados com palavras mais cultas e joguetes de sinônimos e verbos.

Mas o que é o ato de escrever senão o literal desdobramento do espírito do escritor em linhas difusas e elucubrações secretas ? Qual ser apaixonado não se torna ridículo, patético diante do ser amado ? Qual a diferença entre um escritor de poesia de cordel e de um Saramago ? Ambos não expressam suas verdades, sonhos e fantasias, seja por poucos parágrafos ou inúmeros volumes ?

A ficção de um escritor não passa da realização e projeção dos seus sonhos em quem se aventura a ler seus textos. Não seria egoísmo demasiado guardar para si mesmo a mais tosca poesia ou conto sem nexo ?

Escrever é o ato de psicografar o íntimo do autor, e nesse caso sendo ridículo ou não, é necessária em algum momento a exposição pública, mesmo que gere risos de galhofa ou lágrimas de emoção.

Escrever é a prova que a vida merece ser publicada, seja ela complexa ou de curta duração. Partilhar emoções mais que um ato de humildade é um ato de ternura por quem se atreve a passear pelo íntimo do poeta, pelo desprendimento gratuito da alma do escritor.


gianovik



quinta-feira, 23 de maio de 2013

Sonho de Pescador



 

Estava com meus pouco mais de 20 anos, vivendo em uma lúdica vila de pescadores. Era um desfiladeiro imenso repleto de casas bem acabadas, fazia uma curva ao largo de onde se avistava o mar e centenas de barcos ancorados, era parte daquela paisagem mediterrânea. Haviam gaivotas trinando no ar intempestivamente e o sol timidamente apontava como uma vela que não queria ser acesa, podendo se apagar com um sopro no horizonte oceânico. Olhava para aquele caminho sabendo que ele conduzia até a minha pequena nau, nau que meu pai me ensinou a guiar em busca de alimento desde tenra idade. Jazia de pé com meu peito nu e meus cabelos dourados, as mechas encaracoladas acompanhando os volteios que o vento uivante da encosta sussurrava em meus ouvidos. A ladeira de paralelepípedos ululava sobre o reflexo do postes ainda acesos ao ponto de parecer um onda viva em movimento furtivo. Os vizinhos começando a escancarar suas janelas, curiosos perante a pacata monotonia da ilha, acenavam a minha passagem enquanto tratavam de seus afazeres e de acordar para tanger seus rebentos em direção a pequena escola primária da vila.

Tinha pouco estudo era verdade, terminara o ensino fundamental literalmente a ferro e vara de marmelo, muito bem orquestrada diga-se de passagem pela minha mãe. Não queria mais um pescador na família, sonhava com o filho “doutor” e com os louros de quebrar o ciclo do odor de peixe que impregnava cada geração que habitava aquelas paredes. Pintava a nossa humilde casa de seis em seis meses mas o odor salobro se desprendia pelas camadas de tinta como se fosse impossível desenraizar a natureza marítima que ergueu e fundou a vila de São Carlos. Eramos todos homens do mar que aprendemos a caminhar eretos.


Olhava ao redor e na preguiça e fulgor da idade, pensava se buscava primeiro minha rede e material de pesca ou se corria ladeira abaixo, cedendo a tentação de quebrar na esquina da doceria Santa Julia, dirigindo-me a casa de minha linda amada !!! Há ! Sofia ! Àquela hora ainda devia estar amarrotada em seus lençóis, deslizando sua pele aveludada por colchas e cetins. Sabia que nada poderia fazer a não ser imaginar seu corpo esculpido pelo trabalho intenso. Trabalhava com a mãe fazendo colchas e tecendo redes na única tecelagem do vilarejo. Possuía pernas torneadas e cochas monumentais, olhos verdes agateados como esmeraldas, boca carnuda e saliências nas bochechas que adornavam ainda mais a tez esculpida de seu rosto, capaz de desarmar o mais valente dos homens com um esboço de sorriso no canto dos lábios, sua pele diga-se de passagem, bronzeada pelo sol escaldante do mediterrâneo e o corpanzil moldado pela rotina de subir e descer a imensa ladeira que trilhava de sua casa até o comércio que margeava a praia, onde os turistas de acotovelavam pra ver as maravilhas de seu artesanato. Verdade seja dita que muitos estavam ali muito mais dispostos a cofiar a beleza da sereia de olhos grandes e verdes e se camuflavam na desculpa do turismo fortuito pra ficar algum tempo a mais, pajeando a bela morena.

Mas era cedo demais pra tentar imaginar o olhar de deleite de Sofia, era momento de navegar. Teria todos os beijos e gracejos quando voltasse ao entardecer e avistasse do mar seu corpo e cabelos ondulando na beira do cais, e a projeção daquele sorriso que como um farol me guiaria em segurança aos seus seios fartos, a me ancorar ao seu colo aquecido e morno pela força do sexo e da cupidez.

Barco no mar, vela sendo hasteada, Ricardo e Flávio manobrando o leme e preparando as redes para lacear em alto mar com bóias os pontos das armadilhas.

Avistava os colegas já velejando, acenava em sinal de cordialidade e recebia acenos de boa sorte, amigos e pescadores antigos, colegas do meu pai que há muito se fora pelos braços do Deus Netuno.

Três horas se passaram e o sol já estava a nos guiar em alto mar. Começamos a distender as redes e liberar as boias de marcação. Flávio preparando e alinhavando as iscas, Ricardo manobrando a embarcação pra formar o bolsão onde cercaríamos os cardumes de tainhas e salmões mais próximos.

Foi então que algo estranho ocorreu.

A rede ficou presa em alguma coisa.

  • Ricardo deve ser algum cardume menor que já se enroscou.

Nisso Flávio parou de preparar as iscas e se aproximou com um arpão do ponto onde parecia ter se alinhavado o cordel de iscas.

Mexeu, cutucou, revolveu a água com a lança, eis que de repente é puxado com lança e tudo para dentro da água.

A próxima cena é indescritível. Flávio surge com metade do tronco fora d'água deslizando em direção a embarcação com uma expressão de pânico e horror que jamais havia visto nos olhos de um ser humano.

Então entendi tudo. Flávio tinha sido capturado por uma baleia orca que assim como nós, estava caçando os cardumes de salmões. Diante do horror dos nossos olhos, o corpo de Flávio descrevia um estranho balé de gritos e giros, com o olhar perdido de quem sabia que não haveria salvação, nos olhou de relance uma última vez e afundou pra não mais reaparecer.

Ricardo gaguejava , tremia todo o corpo, olhava como que se pudesse ver o que se desenrolava no fundo do oceano. Eu sabia que nada mais poderia fazer, meu estado de tensão enrijecia cada movimento como se fluísse cimento ao invés de sangue pelas veias, apenas gritei pro companheiro :

  • Ricardo !!! Liga o motor !! Vamos sair daqui o mais rápido possív....

Um estrondo forte na proa da embarcação e de repente iscas, baldes, pesos de chumbo, anzóis, cordas e velas viravam ao contrário. O que era céu de repente virou o gélido frio do oceano.

A criatura e seu imenso poder havia virado nosso pequeno barco de um único impacto. Estava em pânico debaixo do barco com ferimentos a mesclar meu sangue ao azul profundo do mediterrâneo, as frestas de luz que delimitavam as bordas da embarcação exibiam nitidamente o balé ensandecido da fera girando em torno de suas presas. Eu precisava sair dali, não avistava mais a figura de Ricardo, mas precisava escapar daquela armadilha, antes que o demônio marinho farejasse meu rastro de sangue e viesse me buscar embaixo da embarcação.

Em meio a todo aquele pesadelo, por mais irracional que fosse, meu único pensamento era : Por que não tinha ido primeiro ver Sofia ? Que me custava invadir sua janela sempre aberta a minha espera aquela madrugada e me aninhar, uma última vez em seus braços, quase podia sentir o cheiro do perfume de seus cabelos encaracolados, meu ninho de luxúrias, o ronronar dela ao abraçá-la em pleno sono, sua mão procurando meu rosto a acariciar leveme...

Carlos !!!!! Carlos !!!

Gritos vinham de cima do casco virado, era o Ricardo, ainda estava vivo, acordei repentinamente de meu delírio e tratei de tentar alcançar a nado o topo invertido da embarcação.

Ricardo estava agarrado ao leme do barco, todo encolhido, tremendo não sei de frio ou de pavor, seu braço esquerdo estava nitidamente quebrado, tentei acalmá-lo, mas ele só olhava fixo em uma direção me obrigando a seguir seus olhos.

Foi então que entendi, a barbatana dorsal da fera vinha em uma velocidade tremenda se aproximando de nós, a fúria da besta ainda não tinha sido saciada, e nesse momento, todo o medo se esvaiu do meu espírito, meu corpo até então retesado como corda de violino entrou em estado de total relaxamento, e no manancial pouco instruído de minha educação veio nitidamente um dos poucos poemas que aprendi nos livros : 
 

“Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis”


O demônio mergulhou como um raio pra depois num salto que encobriu o sol despencar estraçalhando por completo a embarcação, o princípio de um grito fez estréia tímida na garganta de meu companheiro, eu só permanecia em estado de transe acompanhando todo aquele trágico destino já em nítido estado transitorial, como um espectador alheio a tudo vivenciando todo aquele desenlace em terceira pessoa.

Mais uma vez, água, redemoinhos de destroços, dor lancinante, fisgadas e farpas de madeira castigando a carne dormente de frio, e mergulhado naquele turbilhão, agora transparente pelo sol única testemunha daquela pescaria da natureza, ao fundo poucos metros abaixo vi o corpo de Ricardo lutando para vir à tona, quase podia vê-lo pronunciar palavras de socorro com a garganta inunda de água e sal. Estendi minha mão para tentar alcancá-lo, pude ver um esboço de sorriso do amigo, mas a poucos metros de tocá-lo foi arrancado da minha visão pela fera em alta velocidade, que fez meu corpo centrifugar várias vezes antes de perceber a solidão agora completa.

Com os pulmões estourando, nadei em busca de ar. Respirei como se fora o ar de uma criança pós parto, a dor dos pulmões se enchendo e expulsando o líquido salgado conseguia ser mais lancinante que dos cortes e machucados por todo corpo. Já aceitara meu destino, nunca mais veria o rosto de minha amada.

Agarrei-me a um resto de prancha do casco e esperei que a fera viesse terminar sua caçada, não sei quanto tempo se passou, minutos, horas, minha consciência desfalecia e tornava repetidas vezes ainda insistindo em injetar adrenalina buscando sobreviver. Foi quando a “coisa” retornou, mas dessa vez não vinha em linha de ataque, arrastava com o focinho algo pequeno totalmente emaranhado ao que restou de nossa rede de anzois de pesca, aproximou-se o mais que pode e pude então perceber, era um filhote morto que havia se enroscado em nossas iscas e na potente malha da rede. Agora entendia tudo.

Mereciamos morrer.

O animal aproximou-se ao ponto de me encarar profundamente com seus miúdos olhos, já não tinha mais ódio ou a mesma fúria de antes, apenas podia sentir seu lamento, sua perda, e agarrado ao fihote pelo emaranhado de linhas, afundou lenta e definitivamente.

Meu mundo desapareceu.


Não sei quanto tempo se passou, tampouco sonhos ou pensamentos voltaram a fervilhar em minha mente, apenas lembro de sons de motores, apitos, vozes e línguas estranhas. Lembro do frio dar lugar a um calor acolhedor. Da sensação de estar novamente velejando, e de cobertas mornas e do cheiro forte de éter, de bips e zumbidos mecânicos.

A próxima sensação não podia ser real, uma mão macia e carinhosa deslizava pela minha face e se enrolava em meus cabelos, para em seguida contornar meus lábios e emanar daquela tez um cheiro que jamais imaginei voltar a sentir.

Sem abrir os olhos, pude ver o verde de seus olhos, a transparência de sua íris, o calor de seu colo, sonho ou não, sentia que estava salvo, pois o céu não poderia reproduzir tamanha perfeição em dois planos diferentes, estava de volta aos braços de Sofia. 


gianovik

ps.: O poema é de Bertold Brecht

Premissas







" Diante de meus olhos , vejo o ébano de meu mundo.

A neblina a esconder, a face oculta das pessoas.

O silêncio a rebater, os apelos de minha mente.

Os limites da impossibilidade, desgarram minha aflição.

Tudo não passa de escuridão, a refletir os olhos negros,

olhos fecundos do desejo, da incoerência do sexo.

São meras premissas insolúveis, na insolitez de teu ventre,

do que me faz ser semente, daquilo que é infértil."



gianovik




quarta-feira, 22 de maio de 2013

Calabouços






"Evoluto, impávido,
acendo a chama da ternura
pois a alma clama, indaga
a clara essência da candura

Vivo, e por não dizer
respiro a paz dos viventes
das tormentas, sempre
encontro o ápice
a solitude dos descrentes

em luz banhado,
em sol fletido,
vejo a dança das sombras
o clamor dos feridos
a histeria das camélias
o vergar dos galhos
em rebeldia aos bramidos

Em paz, soberbo, tímido
carrego as memórias em segredo
as dores rabiscadas na carne
os amores tatuados no limbo
e sonhos vivos, proverbiados
muito bem guardados
no calabouço dos instintos"


gianovik

Árvore incompleta



 








De tempos em tempos paro para refletir sobre que caminho devo seguir. Como discernir sobre a melhor opção ou trilha para amadurecer meus passos e fazer valer todos os anos que passei tentando entender o tempo, o firmamento, os caminhos que Deus propôs serem parte do palco das minhas encenações.

Encenações sim, porque a vida nada mais é do que uma imensa peça teatral, onde dividida em atos, tentamos alertar, emocionar, divertir, e trazer sensações diversas a platéia que nos assiste. De tempos em tempos temos vontade de largar essa teatralidade mas descobrimos que nada é real se não for devidamente ensaiado na coxia de nossos corações.

Não é fácil ter a nítida sensação de entender as pessoas em detrimento da suas próprias necessidades. Vejo olhares vazios e desesperançosos em todas as esquinas; nos amigos, vizinhos, e naqueles que se esbaldam em pujantes e opulentas festas. A vida se tornou uma busca incessante por prazeres momentâneos. Relacionamentos antes tão valorizados são vividos em contorcionismos de algumas horas; e essas manhãs já despontam rapidamente como se surgisse a cada dia uma nova encarnação. O prazer não é mais algo que pode se desfrutar parcimoniosamente pela esfera dos anos. Agora é, perdoe o termo, um “fast-food” que se serve caminhando na rua entre um intervalo e outro do trabalho.

E nesse teatro perdemos a capacidade de saber o que é digno de amar, valorizar, sentir. Perdemos o interesse em conhecer, dar segundas chances àqueles que, pela inadimplência dos tempos ou fraqueza nas suas certezas, cometem deslizes ou atos falhos.

Paro tanto pra pensar nisso que me entristeço. E quanto mais penso mais me sinto ator de um monólogo sem platéia. Como se perante um espelho recitasse meu texto para alguém que nitidamente envelhece em praça pública esperando um aplauso, um assobio e até quem sabe uma vaia, mas nada disso nunca veio nem virá.

E ao redor desse teatro árvores seguem incólumes no seu voluptuoso ciclo de morte e nascimento, sem que jamais todos os galhos sejam recheados por flores ou frutos.

É isso que nós tornamos ? Árvores incompletas ?? Padecendo da ânsia de viver sem parar pra observar que se não nos aprofundarmos na alma e no desejo de amar o próximo jamais seremos fruticultores nesta vida ?

Eu não creio que esse mundo será aquele que deixarei para meus filhos. Mas lutarei com todas as forças para que independente do que o mundo nos força a ser, serei sempre verdadeiro, amigo, e principalmente, particípio perfeito na agregação de amor e carinho a todos que comigo caminhem.

E que se feche a cortina, mas que nunca termine a teatralidade da esperança de dias melhores.


gianovik

terça-feira, 21 de maio de 2013

Pelo caminho das letras …





Desses amuletos malucos que se compra em qualquer brechó. Era isso que William procurava. Estava numa maré de azar daquelas !! O emprego já não o satisfazia, o próprio caminho pra o trabalho já o enchia de tédio. Placas, sinais, buzinas, fumaça e xingamentos tão comuns as ruas de São Paulo.

Essa cidade parece viva mas é no fundo um grande liquidificador de tensões !!!

Não via a hora que algo modificasse aquela espartana rotina. Sua namorada estava por um fio pra deixá-lo. Ele pressentia isso. Ela muito mais que ele já não esboçava aquele encantador reflexo de satisfação no rosto. Era praticamente um : - Entra aí que estou terminando de me arrumar.

Acho que se fosse o entregador de pizza a reação teria sido mais comovente. Ficava imaginando ela num frenesi maluco rasgando as roupas e se atirando em cima do moleque piolhento repleto de acnes !!! Rolando em cima da calabresa e da muzzarella lambuzando aqueles fartos seios com catchup e maionese. Achei doentio aquele pensamento mas pela recepção acho que o orgasmo era garantido com o moleque da pizza. Com ele mesmo ? Só um : - Tô me arrumando ! Senta aí.

Vontade de mandar tudo a Macarena !!! Operador de bolsa de valores desdes os 26, Formado em Administração com MBA e duas pós em finanças, chegava aos 35 solteiro e com uma mulher totalmente amorfa aos seus desejos. Era mais uma engrenagem daquela cidade estéril habitada por seres robóticos !!

Mas naquele dia parecia que as coisas seriam diferentes. Entre uma das centenas de lojas que percorria pra fazer a típica digestão móvel do paulista, avistou aquele brechó pra lá de exótico. Era uma loja que parecia um resumo do beco Diagonal do Harry Potter ! Tão deslocada de contexto que não tinha como não entrar pra ver o que ela reservava !!

Entrou e por dentro não era tão impressionante. Era como aquelas antigas lojas que consertavam de tudo na sua infância. TVs de tubos amontoadas, vitrolas de todas as marcas e modelos, aparelhos antigos, réplicas fajutas e peças com a estirpe típica do comércio chinês. Mas uma coisa lhe chamou a atenção. Uma peça no formato de meia lua encrustada numa espécie de amuleto.

A velhinha com cara de Miss Dayse chegou perto observando a curiosidade e jogou seu encanto típico : - Foi da minha bisavó !! Ela ganhou de um francês que conheceu pouco antes da segunda guerra mundial em Trípoli. É um símbolo de esperança ! De renascimento da luz e do brilho das estrelas !

Árabes !! Todos cheios de histórias de mil e uma noites blá blá blá !!! Mas sempre acaba funcionando. Alguém sempre compra um souvenir.

Olhou, tocou, revirou e até cafungou pra ter certeza que não era só mais uma tranqueira com maquiagem antiga. Era velho mesmo, cheirava a mofo e perfume patchouly. Coisa de gente velha.

Era barato e acabou comprando. Já gastou dinheiro com coisas mais caras em busca de sorte e não iria se desabastecer financeiramente com uma quinquilharia tão boba.

E a dita cuja e esnobe namorada que não ficava pronta !!!!!!!!!!

É hoje. É hoje que mando tudo pra casa do cara...

- Pronto lindo. Vamos que o cinema ainda fica longe.

Esbocei um grunhido misturado com um sorriso. Já era hora !

Cinema lotado, ar condicionado chiando igual flatulência de idoso e nada daquela sala esfriar ! São Paulo estava passando por um verão mercuriano e dentro daquele galpão da sétima arte a temperatura já devia beirar os 41 graus !!! Suor escorrendo pelo rego das costas parecia mais a Niagara Falls. A namorada encangada no meu braço de forma quase siamesa completava aquele modelo em curta escala do aquecimento global.

E no bolso o tal amuleto que havia até esquecido.

Foi quando aconteceu.

Um calor intenso e localizado começou a BROTAR especificamente do lugar onde o amuleto tinha se aninhado.

No começo não incomodou tanto. Mas em determinado instante já desconfiado que aquele troço devia ter estado em contato com algum reagente químico tomei uma atitude. Solicitei um desacoplamento básico da mina e fui ao banheiro verificar que obliteração era aquela !!!

Banheiro vazio mas com o odor dos campos de verão do inferno !! Nada pode ser pior do que mofo misturado com matéria de descarte corpóreo. Saquei imediatamente do bolso o objeto e foi quando observei que a meia lua que havia comprado agora havia se transmutado numa completa e refletiva lua cheia !!

Só pode ser uma brincadeira. Como isso pode ter ocorrido. De repente quando tentei colocá-lo de volta no bolso e retornar pra sessão o teto descolou e se juntou ao chão num movimento tão rápido e alucinógeno que pensei : vou morrer nesse lugar estranho, capaz ainda de cair de cabeça em algum desses banheiros. Deu tempo de pensar isso mesmo ?? Nem sei. Só sei que tudo escureceu …
E o tempo se deslocou … Não sei quanto tempo …

Preso horas naquela escuridão. Deslocado e como que congelado. Até os pensamentos pareciam que projetados no breu. E meus olhos não abriram. Mas conseguia ver e ouvir tudo ao meu redor. E o que ouvia não assustava, não adormecia meus sentidos, não ouvia nada exceto um sussurro ao longo que dizia de forma crescente e a cada instante mais audível : - Agora aprenda … agora aprenda … Olhe e aprenda ...

Um filete de luz foi surgindo do nada e uma fresta de porta foi se entrecortando naquela total ausência de luminosidade.

E pude então caminhar em sua direção.

Dentro daquela sala, estava uma grande mesa de jantar, 8 cadeiras muito bem dispostas sob um candelabro de 6 luminosas lâmpadas.

Aquela sala me pareceu familiar. Aquele lugar não era assim tão distante no tempo.

Chegando mais próximo pude perceber que haviam jornais dispostos sobre a mesa e a frente da cadeira de cabeceira, o topo de uma cabeça começou a ficar visível.

Era meu Pai. Era um momento sublime da minha criação. Foi o dia da minha infância que aprendi a somar vogais e consoantes, aprendendo a ler !!

E ele dizia : Agora aprenda ! B com A : BA, C com E : CE … E agora meus metro e 80 foram resumidos a poucas dezenas de centímetros quando me enxerguei descobrindo os segredos do conhecimento.

Nesse instante meu Pai retirou seus óculos, olhou-me firmemente e de forma sisuda esqueceu que eu era criança, falando como se estivesse diante do William adulto.

  • Meu filho, você esqueceu por que viemos aqui ? Não viemos para questionar o mundo, nem modificar as pessoas ou reconstruir a vida. Muito menos redefinir verdades onipresentes. Possuímos dons é claro, mas dons são arquétipos inerentes ao nosso ser. Viver é estar o tempo todo aprendendo a filtrar aquilo que nós é capaz de enobrecer. Não se perca na ilusão de que pode modificar o mundo. O mundo não está em você muito menos você nele. Viva sua essência dentro da plenitude do amor que, este sim, poderá projetar criações tão revigorantes que independente do tempo, farão sentido a sua passagem pela terra. A vida não é um filme do qual somos meros coadjuvantes, a vida é a própria manifestação em tempo real do criador. Viva, mas não se perca em delírios, não se perca em desígnios e lamentações tão forçosas. Cada dia que se imagina vislumbrar o real se penetra metro a metro na ilusão e no desespero. Deus talvez tivesse um plano original pra cada um de nós, mas com certeza somente você poderá entender qual será a escrita final de seu roteiro. Olhe e aprenda ..

Olhe e …

… respire !! respire !! William ??? William … Ele está voltando ! William eu te am...

ACORDAAAAAAA !!!!!!

Levantei ensopado de suor e com gosto de morto-vivo na boca. Parecia que tinha escavado a unhadas e mordidas meu caminho pra fora do solo.

Minha mãe me olhava atônita.

  • Filho ? Deu pra ter pesadelos agora de tarde ?? Levanta que teu barco já está no porto te esperando. A maré está linda hoje !!! vocês tem muito o que velejar até chegar em alto mar. Lembre-se que será noite de lua cheia e não se pode desperdiçar tempo !

Meu Deus ! Que loucura ! William ? São Paulo ? Medalhão ? Que sonho mais maluco !!!

Abro a janela e dou de cara com o vento morno e salgado do mar !!

Este é o meu lar. Será que sonhei com isso pra aprender a dar valor ao que tenho ?

Eis que então reparo que em minha mão fechada estava o relógio de meu Pai. Única singela lembrança de um velho marinheiro. Único verdadeiro tesouro material que aquele homem havia me deixado.

Pois nada podia substituir a riqueza humana e moral que havia me presenteado !!

Lá ao longe escuto me filho sorrindo e gritando : Pai, vai não. Saudade fica !!

Sobre meus ombros quase sinto e vejo o sorriso e o frescor do hálito de minha amada ! Amada Helena, abraçada e se impregnando previamente de saudade. Dois sóis me iluminando em hemisférios opostos. Um se pondo, outro nascendo e eternamente a me aquecer. Doce Helena com aquele olhar de quem não quer soltar aquele que ama e sempre a amará !!!


Vou pescar Pai. Minha única ilusão é a de um dia nós encontrarmos novamente.


Vou sempre continuar olhando e aprendendo.


gianovik

14 anos




Quando tinha 14 anos, caminhava horas pelas ruas de meu bairro, batia canelas sem destino mesmo, tentava encontrar sentido nas pessoas que via, nos jardins das casas, nas crianças brincando nas garagens, nos carros brigando por espaços no trânsito, até mesmo no movimento das folhas que caiam dos vários jambeiros e mangueiras que faziam parte do cenário de cada habitação. A verdade é que não me encaixava em nenhum daqueles esteriótipos. Caminhava como um fantasma, a observar a vida como numa tela de cinema. Tinha 14 anos, e não me vislumbrava fazendo parte de nenhum molde cotidiano da existência social.

Nunca fui muito comunicativo, tornei-me quando a preguiça de escrever destravou a língua, mas nessa época, franzino, alto e tímido, não teria coragem de expor o ridículo de minha figura a análise coletiva, preferia ser aquela figura esguia e taciturna que girava pelos quarteirões tentando encontrar algum milagre ou propósito pra tudo que me cercava.

14 anos. Hormônios, puberdade, espinhas brotando como erva daninha, primeiros sinais de barba e ralo bigode. É, eu tinha motivos pra me sentir um estranho no ninho, um pássaro que não podia voar por ausência de todas as penas. Estava preso àquela realidade enfadonha, amarrado ao laço familiar pela total falta de referência de para onde ir. Só me restava caminhar como se pudesse distorcer os fatos e criar meu próprio mundo. Era um mundo só meu, onde a existência do todo não afetava meu ciclo existencial. Não podia imaginar o que ainda estava por vir, não sonhava com os amores que se sobreporiam aos anos, com as dores dos fracassos, com o sentimento de perda, com os beijos, cheiros, abraços, olhares de desejo, o arquejar dos corpos em êxtase, o andar de mão dadas, sentir o cheiro da pele aquecida no atrito dos corpos, o sabor de uma boca ensandecida de volúpia.

Tudo isso era inimaginável àquele adolescente que recentemente havia guardado no baú seus brinquedos de infância, que vez ou outra os olhava sofregamente com a ânsia de tornar a construir castelos, grandes batalhas, guerras de soldados, vitórias, heróis e bandidos, tudo isso perdido pelo morno escárnio da adolescência.

Mal sabia ele que as grandes batalhas ainda estavam por vir, e que todo lodoso e turbulento circo de relações humanas começava a erguer lenta e progressivamente seu palco de encenações.

A vida era mais previsível naquelas voltas pelo meu bairro, mas com certeza, bem menos emocionante, pois apesar das dores e vitórias, construiu-se o caráter e a dignidade de um homem.

Agora já era capaz de fazer parte do cenário, não mais um mero expectador.

domingo, 19 de maio de 2013

Folha em Branco







Quando olho pra uma página em branco, me sinto maculando a pureza do silêncio.

De fato gostaria que não fosse necessário escrever, expressar idéias, nortear sentimentos, descrever situações, percrustrar solo sagrado com a infâmia de palavras soltas ao vento. Vejo mais grandeza no vazio de uma folha que na poluição visual das pontuações, sílabas e verbos, impondo sua força de ação e pronomiando as firulas do autor.

Feliz do autor que no silêncio de suas divagações expressa sua sinfonia literária sem macular a essência do branco infinito de uma página.

Claro que esse autor não existe, pois pra haver o nascimento da literatura essa pureza tem que morrer. Na vida parece que tudo tem que desocupar espaço para que algo venha a nascer. Energias contrárias não podem ocupar o mesmo espaço, uma tem que ceder sua existência para o nascimento de outra. Da dor do parto se faz a vida, da mágoa se produz o perdão, do ser humilhado advém o humilde, do erro contra o próximo se cria a consciência do sentimento de correção, do amor desperdiçado se produz a evolução moral. Claro que é uma modo rebuscado dizer que houve “amor desperdiçado”, pois se foi amor verdadeiro e não foi capaz de tocar o coração de quem se amou, é por que essa vida ainda não estava preparada pra entender seu significado.

Somos criados num mundo que se ensina que beleza tem limite, caridade não é pra todos, humildade é para os fracos e o amor, a esse é dos sentimentos mais mal interpretados e levianamente usados. Confunde-se amor com ternura, atração física, sexo, desejo, paixão e muitas outras menores empatias.

Perdeu-se na condição flagelada do homem a essência divina do amor. O homem diz amar por conveniência ou por medo de uma solidão física. Ama-se como troca de algemas, não como sublime desejo de crescimento espiritual e progressão solidária.

O amor não se abala com as vicissitudes do dia a dia, não se encolhe perante os erros, não baixa a cabeça perante os fracassos, não deixa sequer de existir quando é rejeitado, ele cresce sempre e sempre mais, numa expressão geométrica que extrapola o mero egoísmo de quem ama e se regojiza com a felicidade de quem não lhe acolheu.

O amor sequer deveria ter palavra pra designá-lo, deveria ser somente essa energia que promulga o bem indiscriminadamente, presente ou ausente, distante ou próximo, rejeitado ou mesmo mal interpretado, incapaz de fazer o mal ou provocar sentimentos mesquinhos e dores de rejeição.

Só esse amor pode macular folhas em branco sem produzir sons ou denegrir a beleza deste vazio níveo, que pelo amor permanece virgem e inalterado.

Portanto, continuo sentido o silêncio nesta folha.

Nada foi violado.


gianovik