terça-feira, 21 de maio de 2013

Pelo caminho das letras …





Desses amuletos malucos que se compra em qualquer brechó. Era isso que William procurava. Estava numa maré de azar daquelas !! O emprego já não o satisfazia, o próprio caminho pra o trabalho já o enchia de tédio. Placas, sinais, buzinas, fumaça e xingamentos tão comuns as ruas de São Paulo.

Essa cidade parece viva mas é no fundo um grande liquidificador de tensões !!!

Não via a hora que algo modificasse aquela espartana rotina. Sua namorada estava por um fio pra deixá-lo. Ele pressentia isso. Ela muito mais que ele já não esboçava aquele encantador reflexo de satisfação no rosto. Era praticamente um : - Entra aí que estou terminando de me arrumar.

Acho que se fosse o entregador de pizza a reação teria sido mais comovente. Ficava imaginando ela num frenesi maluco rasgando as roupas e se atirando em cima do moleque piolhento repleto de acnes !!! Rolando em cima da calabresa e da muzzarella lambuzando aqueles fartos seios com catchup e maionese. Achei doentio aquele pensamento mas pela recepção acho que o orgasmo era garantido com o moleque da pizza. Com ele mesmo ? Só um : - Tô me arrumando ! Senta aí.

Vontade de mandar tudo a Macarena !!! Operador de bolsa de valores desdes os 26, Formado em Administração com MBA e duas pós em finanças, chegava aos 35 solteiro e com uma mulher totalmente amorfa aos seus desejos. Era mais uma engrenagem daquela cidade estéril habitada por seres robóticos !!

Mas naquele dia parecia que as coisas seriam diferentes. Entre uma das centenas de lojas que percorria pra fazer a típica digestão móvel do paulista, avistou aquele brechó pra lá de exótico. Era uma loja que parecia um resumo do beco Diagonal do Harry Potter ! Tão deslocada de contexto que não tinha como não entrar pra ver o que ela reservava !!

Entrou e por dentro não era tão impressionante. Era como aquelas antigas lojas que consertavam de tudo na sua infância. TVs de tubos amontoadas, vitrolas de todas as marcas e modelos, aparelhos antigos, réplicas fajutas e peças com a estirpe típica do comércio chinês. Mas uma coisa lhe chamou a atenção. Uma peça no formato de meia lua encrustada numa espécie de amuleto.

A velhinha com cara de Miss Dayse chegou perto observando a curiosidade e jogou seu encanto típico : - Foi da minha bisavó !! Ela ganhou de um francês que conheceu pouco antes da segunda guerra mundial em Trípoli. É um símbolo de esperança ! De renascimento da luz e do brilho das estrelas !

Árabes !! Todos cheios de histórias de mil e uma noites blá blá blá !!! Mas sempre acaba funcionando. Alguém sempre compra um souvenir.

Olhou, tocou, revirou e até cafungou pra ter certeza que não era só mais uma tranqueira com maquiagem antiga. Era velho mesmo, cheirava a mofo e perfume patchouly. Coisa de gente velha.

Era barato e acabou comprando. Já gastou dinheiro com coisas mais caras em busca de sorte e não iria se desabastecer financeiramente com uma quinquilharia tão boba.

E a dita cuja e esnobe namorada que não ficava pronta !!!!!!!!!!

É hoje. É hoje que mando tudo pra casa do cara...

- Pronto lindo. Vamos que o cinema ainda fica longe.

Esbocei um grunhido misturado com um sorriso. Já era hora !

Cinema lotado, ar condicionado chiando igual flatulência de idoso e nada daquela sala esfriar ! São Paulo estava passando por um verão mercuriano e dentro daquele galpão da sétima arte a temperatura já devia beirar os 41 graus !!! Suor escorrendo pelo rego das costas parecia mais a Niagara Falls. A namorada encangada no meu braço de forma quase siamesa completava aquele modelo em curta escala do aquecimento global.

E no bolso o tal amuleto que havia até esquecido.

Foi quando aconteceu.

Um calor intenso e localizado começou a BROTAR especificamente do lugar onde o amuleto tinha se aninhado.

No começo não incomodou tanto. Mas em determinado instante já desconfiado que aquele troço devia ter estado em contato com algum reagente químico tomei uma atitude. Solicitei um desacoplamento básico da mina e fui ao banheiro verificar que obliteração era aquela !!!

Banheiro vazio mas com o odor dos campos de verão do inferno !! Nada pode ser pior do que mofo misturado com matéria de descarte corpóreo. Saquei imediatamente do bolso o objeto e foi quando observei que a meia lua que havia comprado agora havia se transmutado numa completa e refletiva lua cheia !!

Só pode ser uma brincadeira. Como isso pode ter ocorrido. De repente quando tentei colocá-lo de volta no bolso e retornar pra sessão o teto descolou e se juntou ao chão num movimento tão rápido e alucinógeno que pensei : vou morrer nesse lugar estranho, capaz ainda de cair de cabeça em algum desses banheiros. Deu tempo de pensar isso mesmo ?? Nem sei. Só sei que tudo escureceu …
E o tempo se deslocou … Não sei quanto tempo …

Preso horas naquela escuridão. Deslocado e como que congelado. Até os pensamentos pareciam que projetados no breu. E meus olhos não abriram. Mas conseguia ver e ouvir tudo ao meu redor. E o que ouvia não assustava, não adormecia meus sentidos, não ouvia nada exceto um sussurro ao longo que dizia de forma crescente e a cada instante mais audível : - Agora aprenda … agora aprenda … Olhe e aprenda ...

Um filete de luz foi surgindo do nada e uma fresta de porta foi se entrecortando naquela total ausência de luminosidade.

E pude então caminhar em sua direção.

Dentro daquela sala, estava uma grande mesa de jantar, 8 cadeiras muito bem dispostas sob um candelabro de 6 luminosas lâmpadas.

Aquela sala me pareceu familiar. Aquele lugar não era assim tão distante no tempo.

Chegando mais próximo pude perceber que haviam jornais dispostos sobre a mesa e a frente da cadeira de cabeceira, o topo de uma cabeça começou a ficar visível.

Era meu Pai. Era um momento sublime da minha criação. Foi o dia da minha infância que aprendi a somar vogais e consoantes, aprendendo a ler !!

E ele dizia : Agora aprenda ! B com A : BA, C com E : CE … E agora meus metro e 80 foram resumidos a poucas dezenas de centímetros quando me enxerguei descobrindo os segredos do conhecimento.

Nesse instante meu Pai retirou seus óculos, olhou-me firmemente e de forma sisuda esqueceu que eu era criança, falando como se estivesse diante do William adulto.

  • Meu filho, você esqueceu por que viemos aqui ? Não viemos para questionar o mundo, nem modificar as pessoas ou reconstruir a vida. Muito menos redefinir verdades onipresentes. Possuímos dons é claro, mas dons são arquétipos inerentes ao nosso ser. Viver é estar o tempo todo aprendendo a filtrar aquilo que nós é capaz de enobrecer. Não se perca na ilusão de que pode modificar o mundo. O mundo não está em você muito menos você nele. Viva sua essência dentro da plenitude do amor que, este sim, poderá projetar criações tão revigorantes que independente do tempo, farão sentido a sua passagem pela terra. A vida não é um filme do qual somos meros coadjuvantes, a vida é a própria manifestação em tempo real do criador. Viva, mas não se perca em delírios, não se perca em desígnios e lamentações tão forçosas. Cada dia que se imagina vislumbrar o real se penetra metro a metro na ilusão e no desespero. Deus talvez tivesse um plano original pra cada um de nós, mas com certeza somente você poderá entender qual será a escrita final de seu roteiro. Olhe e aprenda ..

Olhe e …

… respire !! respire !! William ??? William … Ele está voltando ! William eu te am...

ACORDAAAAAAA !!!!!!

Levantei ensopado de suor e com gosto de morto-vivo na boca. Parecia que tinha escavado a unhadas e mordidas meu caminho pra fora do solo.

Minha mãe me olhava atônita.

  • Filho ? Deu pra ter pesadelos agora de tarde ?? Levanta que teu barco já está no porto te esperando. A maré está linda hoje !!! vocês tem muito o que velejar até chegar em alto mar. Lembre-se que será noite de lua cheia e não se pode desperdiçar tempo !

Meu Deus ! Que loucura ! William ? São Paulo ? Medalhão ? Que sonho mais maluco !!!

Abro a janela e dou de cara com o vento morno e salgado do mar !!

Este é o meu lar. Será que sonhei com isso pra aprender a dar valor ao que tenho ?

Eis que então reparo que em minha mão fechada estava o relógio de meu Pai. Única singela lembrança de um velho marinheiro. Único verdadeiro tesouro material que aquele homem havia me deixado.

Pois nada podia substituir a riqueza humana e moral que havia me presenteado !!

Lá ao longe escuto me filho sorrindo e gritando : Pai, vai não. Saudade fica !!

Sobre meus ombros quase sinto e vejo o sorriso e o frescor do hálito de minha amada ! Amada Helena, abraçada e se impregnando previamente de saudade. Dois sóis me iluminando em hemisférios opostos. Um se pondo, outro nascendo e eternamente a me aquecer. Doce Helena com aquele olhar de quem não quer soltar aquele que ama e sempre a amará !!!


Vou pescar Pai. Minha única ilusão é a de um dia nós encontrarmos novamente.


Vou sempre continuar olhando e aprendendo.


gianovik

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