domingo, 19 de maio de 2013

Como não atravessar um rio


 







Era um rio qualquer, mas eu tinha que atravessá-lo. Já havia atravessado outros, apesar do peso das mochilas e da roupa pesada e inapropriada. Não lembrava de haver trecho tão largo no mapa fluvial dos rios que desaguam na costa dos estados de pernambuco e paraíba. Voltar não era opção, contornar pelo mangue em meio a floresta fechada e rasteira poderia esconder mais perigos do que encarar a água e tentar alcançar a margem, antes que a força da correnteza nos jogasse em alto mar.

Olhei pra meus companheiros de caminhada como que procurando por a culpa em alguém. Alberto me olhava com a mesma expressão de desânimo, Estéfano ria amarelo, como se pudesse com o poder do escárnio dividir o rio em dois pra criar uma travessia.

                                      - Bem pessoal, não vejo muitas alternativas.

- Que tal escrevermos cartas pras nossas famílias ? Vai que alguém sobrevive e pelo menos entrega as cartas.

  • Estéfano isso não tem graça. Não vou morrer aos 17 anos por conta de uma viagem mal planejada.

Melhor meter a cara logo que a maré está subindo e vai piorar. - Dizia Alberto.

E foi que entre as várias opções, medos, expectativas, conclusões e culpas rebatidas entre os desafetos de jornada, escuto o “Tchibum” na água.

Alberto de mochila e tudo havia se arremessado a travessia.

Gerou imediato efeito cascata, num instante, sem cartas escritas ou ponderações de segurança, estávamos todos nadando naquele turbilhão de água.

Olhava pra margem e nadava arrastando o peso redobrado das roupas e mochilas, passavam galhos entre nós e era impossível parar pra pensar em quem estava à frente ou atras, vislumbrava de relance as mochilas dos companheiros descendo e indo a tona como cascos de tartarugas ou baleias buscando fôlego, minha asma, que devia ficar quieta e oculta nas reminescências do passado fazia sua lenta reestreia num momento tão inadequado. Os braços já acusando sinais de câimbra e o trovoar do encontro rio-mar, anunciava que estávamos chegando perto demais dos perigosos redemoinhos formados pela dança mortal da natureza. Histórias de pescadores fervilhavam na cabeça, das mortes dos que ficavam presos na correnteza enlouquecida originada pelo encontro das águas. Em determinado momento já não via mais sinal dos amigos. Pronto, seria o portador da trágica noticia da morte aos entes, como dizer a linda mãe do Estéfano que seu único filho morreu num impeto estúpido de juventude ? Tudo isso pelo esquecimento de um simples maceió no mapa ? Como iria informar que futuros médico e advogado morreram por uma negligência da puberdade ? Além do mais, quem garante que eu iria escapar ? Olhava pra margem e parecia cada vez mais distante, em determinado momento de cansaço ao passar de um tronco, fiz menção de agarrar-me a ele para descansar, mas lembrei que o inanimado seria alheio ao meu destino e iria me dar uma carona gratuita para o inferno caudaloso que se formava ao final.

Esbaforido, pesado, dormente, cansado, movendo o corpo na água como uma roupa guiada pela força de uma lavadora automática, sentindo uma paz inebriante, daquelas que deve surgir nos últimos momentos da vida de qualquer irresponsável, sinto o roçar de areia na ponta de meus dedos, aos poucos o pés dormentes pressentem pisar em algo mais sólido, e como se fosse o próprio exemplo da evolução lenta e gradual do peixe que aprendeu a dar seus primeiros passos, saio em movimentos dolorosos e lentos da água. Estou exausto.


Longos minutos, talvez horas, se passam sem que me perceba salvo. Tinha alcançado a outra margem. Procuro lentamente, a medida que a visão se favorece do retorno do oxigênio ao cérebro, encontrar vestígios de meus amigos. Olho pro rio, nenhum sinal deles, olho pro encontro das águas, tal qual turbilhão ensandecido, verdadeira bravata de titãs e não vejo nenhum troféu humano flutuando entre eles.

Então procuro na areia, e os vejo. Estavam tal qual tartarugas no período da desova, de bruços, extenuados, procurando fazer o mínimo esforço e me olhando com o mesmo sentimento nos olhos. Sobrevivemos.

  • Da próxima vez eu traço o plano de viagem, e pelo amor de Deus, com a escala certa desses rios.

Estéfano já não ria, só espremia roupas e bagagem encharcadas.


Estragou toda a comida, está tudo molhado e imprestável – Dizia Alberto


Então finalmente eu ri. Depois de tudo isso ainda pensar em comida.


Prosseguimos a jornada, mas dessa vez sem pensar em cartas. Ainda havia um caminho longo pela frente.


gianovik






Nenhum comentário:

Postar um comentário