Era um rio qualquer, mas eu tinha que atravessá-lo. Já havia
atravessado outros, apesar do peso das mochilas e da roupa pesada e
inapropriada. Não lembrava de haver trecho tão largo no mapa
fluvial dos rios que desaguam na costa dos estados de pernambuco e
paraíba. Voltar não era opção, contornar pelo mangue em meio a
floresta fechada e rasteira poderia esconder mais perigos do que
encarar a água e tentar alcançar a margem, antes que a força da correnteza nos jogasse em alto mar.
Olhei pra meus companheiros de caminhada como que procurando por a
culpa em alguém. Alberto me olhava com a mesma expressão de
desânimo, Estéfano ria amarelo, como se pudesse com o poder do
escárnio dividir o rio em dois pra criar uma travessia.
- Que tal escrevermos cartas pras nossas famílias ? Vai que alguém
sobrevive e pelo menos entrega as cartas.
- Estéfano isso não tem graça. Não vou morrer aos 17 anos por conta de uma viagem mal planejada.
Melhor meter a cara logo que a maré está subindo e vai piorar. -
Dizia Alberto.
E foi que entre as várias opções, medos, expectativas, conclusões
e culpas rebatidas entre os desafetos de jornada, escuto o “Tchibum”
na água.
Alberto de mochila e tudo havia se arremessado a travessia.
Gerou imediato efeito cascata, num instante, sem cartas escritas ou
ponderações de segurança, estávamos todos nadando naquele
turbilhão de água.
Olhava pra margem e nadava arrastando o peso redobrado das roupas e
mochilas, passavam galhos entre nós e era impossível parar pra
pensar em quem estava à frente ou atras, vislumbrava de relance as
mochilas dos companheiros descendo e indo a tona como cascos de
tartarugas ou baleias buscando fôlego, minha asma, que devia ficar
quieta e oculta nas reminescências do passado fazia sua lenta
reestreia num momento tão inadequado. Os braços já acusando sinais
de câimbra e o trovoar do encontro rio-mar, anunciava que estávamos
chegando perto demais dos perigosos redemoinhos formados pela dança
mortal da natureza. Histórias de pescadores fervilhavam na cabeça,
das mortes dos que ficavam presos na correnteza enlouquecida
originada pelo encontro das águas. Em determinado momento já não
via mais sinal dos amigos. Pronto, seria o portador da trágica
noticia da morte aos entes, como dizer a linda mãe do Estéfano que
seu único filho morreu num impeto estúpido de juventude ? Tudo
isso pelo esquecimento de um simples maceió no mapa ? Como iria
informar que futuros médico e advogado morreram por uma negligência
da puberdade ? Além do mais, quem garante que eu iria escapar ?
Olhava pra margem e parecia cada vez mais distante, em determinado
momento de cansaço ao passar de um tronco, fiz menção de
agarrar-me a ele para descansar, mas lembrei que o inanimado seria alheio ao
meu destino e iria me dar uma carona gratuita para o inferno
caudaloso que se formava ao final.
Esbaforido, pesado, dormente, cansado, movendo o corpo na água como
uma roupa guiada pela força de uma lavadora automática, sentindo
uma paz inebriante, daquelas que deve surgir nos últimos momentos da
vida de qualquer irresponsável, sinto o roçar de areia na ponta de
meus dedos, aos poucos o pés dormentes pressentem pisar em algo mais
sólido, e como se fosse o próprio exemplo da evolução lenta e
gradual do peixe que aprendeu a dar seus primeiros passos, saio em
movimentos dolorosos e lentos da água. Estou exausto.
Longos minutos, talvez horas, se passam sem que me perceba salvo.
Tinha alcançado a outra margem. Procuro lentamente, a medida que a
visão se favorece do retorno do oxigênio ao cérebro, encontrar
vestígios de meus amigos. Olho pro rio, nenhum sinal deles, olho pro
encontro das águas, tal qual turbilhão ensandecido, verdadeira
bravata de titãs e não vejo nenhum troféu humano flutuando entre
eles.
Então procuro na areia, e os vejo. Estavam tal qual tartarugas no
período da desova, de bruços, extenuados, procurando fazer o mínimo
esforço e me olhando com o mesmo sentimento nos olhos. Sobrevivemos.
- Da próxima vez eu traço o plano de viagem, e pelo amor de Deus, com a escala certa desses rios.
Estéfano já não ria, só espremia roupas e bagagem encharcadas.
Estragou toda a comida, está tudo molhado e imprestável – Dizia
Alberto
Então finalmente eu ri. Depois de tudo isso ainda pensar em comida.
Prosseguimos a jornada, mas dessa vez sem pensar em cartas. Ainda havia um caminho longo pela frente.
gianovik
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