Estava com meus pouco
mais de 20 anos, vivendo em uma lúdica vila de pescadores. Era um
desfiladeiro imenso repleto de casas bem acabadas, fazia uma curva ao
largo de onde se avistava o mar e centenas de barcos ancorados, era
parte daquela paisagem mediterrânea. Haviam gaivotas trinando no ar
intempestivamente e o sol timidamente apontava como uma vela que não
queria ser acesa, podendo se apagar com um sopro no horizonte
oceânico. Olhava para aquele caminho sabendo que ele conduzia até a
minha pequena nau, nau que meu pai me ensinou a guiar em busca de
alimento desde tenra idade. Jazia de pé com meu peito nu e meus
cabelos dourados, as mechas encaracoladas acompanhando os volteios
que o vento uivante da encosta sussurrava em meus ouvidos. A ladeira
de paralelepípedos ululava sobre o reflexo do postes ainda acesos ao
ponto de parecer um onda viva em movimento furtivo. Os vizinhos
começando a escancarar suas janelas, curiosos perante a pacata
monotonia da ilha, acenavam a minha passagem enquanto tratavam de
seus afazeres e de acordar para tanger seus rebentos em direção a
pequena escola primária da vila.
Tinha pouco estudo era
verdade, terminara o ensino fundamental literalmente a ferro e vara
de marmelo, muito bem orquestrada diga-se de passagem pela minha mãe.
Não queria mais um pescador na família, sonhava com o filho
“doutor” e com os louros de quebrar o ciclo do odor de peixe que
impregnava cada geração que habitava aquelas paredes. Pintava a
nossa humilde casa de seis em seis meses mas o odor salobro se
desprendia pelas camadas de tinta como se fosse impossível
desenraizar a natureza marítima que ergueu e fundou a vila de São
Carlos. Eramos todos homens do mar que aprendemos a caminhar eretos.
Olhava ao redor e na
preguiça e fulgor da idade, pensava se buscava primeiro minha rede e
material de pesca ou se corria ladeira abaixo, cedendo a tentação
de quebrar na esquina da doceria Santa Julia, dirigindo-me a casa de
minha linda amada !!! Há ! Sofia ! Àquela hora ainda devia estar
amarrotada em seus lençóis, deslizando sua pele aveludada por
colchas e cetins. Sabia que nada poderia fazer a não ser imaginar
seu corpo esculpido pelo trabalho intenso. Trabalhava com a mãe
fazendo colchas e tecendo redes na única tecelagem do vilarejo.
Possuía pernas torneadas e cochas monumentais, olhos verdes
agateados como esmeraldas, boca carnuda e saliências nas bochechas
que adornavam ainda mais a tez esculpida de seu rosto, capaz de
desarmar o mais valente dos homens com um esboço de sorriso no canto
dos lábios, sua pele diga-se de passagem, bronzeada pelo sol
escaldante do mediterrâneo e o corpanzil moldado pela rotina de
subir e descer a imensa ladeira que trilhava de sua casa até o
comércio que margeava a praia, onde os turistas de acotovelavam pra
ver as maravilhas de seu artesanato. Verdade seja dita que muitos
estavam ali muito mais dispostos a cofiar a beleza da sereia de olhos
grandes e verdes e se camuflavam na desculpa do turismo fortuito pra
ficar algum tempo a mais, pajeando a bela morena.
Mas era cedo demais pra
tentar imaginar o olhar de deleite de Sofia, era momento de navegar.
Teria todos os beijos e gracejos quando voltasse ao entardecer e
avistasse do mar seu corpo e cabelos ondulando na beira do cais, e a
projeção daquele sorriso que como um farol me guiaria em segurança
aos seus seios fartos, a me ancorar ao seu colo aquecido e morno pela
força do sexo e da cupidez.
Barco no mar, vela sendo
hasteada, Ricardo e Flávio manobrando o leme e preparando as redes
para lacear em alto mar com bóias os pontos das armadilhas.
Avistava os colegas já
velejando, acenava em sinal de cordialidade e recebia acenos de boa
sorte, amigos e pescadores antigos, colegas do meu pai que há muito
se fora pelos braços do Deus Netuno.
Três horas se passaram e
o sol já estava a nos guiar em alto mar. Começamos a distender as
redes e liberar as boias de marcação. Flávio preparando e
alinhavando as iscas, Ricardo manobrando a embarcação pra formar o
bolsão onde cercaríamos os cardumes de tainhas e salmões mais
próximos.
Foi então que algo
estranho ocorreu.
A rede ficou presa em
alguma coisa.
- Ricardo deve ser algum cardume menor que já se enroscou.
Nisso Flávio parou de
preparar as iscas e se aproximou com um arpão do ponto onde parecia
ter se alinhavado o cordel de iscas.
Mexeu, cutucou, revolveu
a água com a lança, eis que de repente é puxado com lança e tudo
para dentro da água.
A próxima cena é
indescritível. Flávio surge com metade do tronco fora d'água
deslizando em direção a embarcação com uma expressão de pânico
e horror que jamais havia visto nos olhos de um ser humano.
Então entendi tudo.
Flávio tinha sido capturado por uma baleia orca que assim como nós,
estava caçando os cardumes de salmões. Diante do horror dos nossos
olhos, o corpo de Flávio descrevia um estranho balé de gritos e
giros, com o olhar perdido de quem sabia que não haveria salvação,
nos olhou de relance uma última vez e afundou pra não mais
reaparecer.
Ricardo gaguejava ,
tremia todo o corpo, olhava como que se pudesse ver o que se
desenrolava no fundo do oceano. Eu sabia que nada mais poderia fazer,
meu estado de tensão enrijecia cada movimento como se fluísse
cimento ao invés de sangue pelas veias, apenas gritei pro
companheiro :
- Ricardo !!! Liga o motor !! Vamos sair daqui o mais rápido possív....
Um estrondo forte na proa
da embarcação e de repente iscas, baldes, pesos de chumbo, anzóis,
cordas e velas viravam ao contrário. O que era céu de repente virou
o gélido frio do oceano.
A criatura e seu imenso
poder havia virado nosso pequeno barco de um único impacto. Estava
em pânico debaixo do barco com ferimentos a mesclar meu sangue ao
azul profundo do mediterrâneo, as frestas de luz que delimitavam as
bordas da embarcação exibiam nitidamente o balé ensandecido da
fera girando em torno de suas presas. Eu precisava sair dali, não
avistava mais a figura de Ricardo, mas precisava escapar daquela
armadilha, antes que o demônio marinho farejasse meu rastro de
sangue e viesse me buscar embaixo da embarcação.
Em meio a todo aquele
pesadelo, por mais irracional que fosse, meu único pensamento era :
Por que não tinha ido primeiro ver Sofia ? Que me custava invadir
sua janela sempre aberta a minha espera aquela madrugada e me
aninhar, uma última vez em seus braços, quase podia sentir o cheiro
do perfume de seus cabelos encaracolados, meu ninho de luxúrias, o
ronronar dela ao abraçá-la em pleno sono, sua mão procurando meu
rosto a acariciar leveme...
Carlos !!!!! Carlos !!!
Gritos vinham de cima do
casco virado, era o Ricardo, ainda estava vivo, acordei
repentinamente de meu delírio e tratei de tentar alcançar a nado o
topo invertido da embarcação.
Ricardo estava agarrado
ao leme do barco, todo encolhido, tremendo não sei de frio ou de
pavor, seu braço esquerdo estava nitidamente quebrado, tentei
acalmá-lo, mas ele só olhava fixo em uma direção me obrigando a
seguir seus olhos.
Foi então que entendi, a
barbatana dorsal da fera vinha em uma velocidade tremenda se
aproximando de nós, a fúria da besta ainda não tinha sido saciada,
e nesse momento, todo o medo se esvaiu do meu espírito, meu corpo
até então retesado como corda de violino entrou em estado de total
relaxamento, e no manancial pouco instruído de minha educação veio
nitidamente um dos poucos poemas que aprendi nos livros :
“Há homens que lutam
um dia, e são bons;
Há outros que lutam um
ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam
muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam
toda a vida
Estes são os
imprescindíveis”
O demônio mergulhou como
um raio pra depois num salto que encobriu o sol despencar
estraçalhando por completo a embarcação, o princípio de um grito
fez estréia tímida na garganta de meu companheiro, eu só
permanecia em estado de transe acompanhando todo aquele trágico
destino já em nítido estado transitorial, como um espectador alheio
a tudo vivenciando todo aquele desenlace em terceira pessoa.
Mais uma vez, água,
redemoinhos de destroços, dor lancinante, fisgadas e farpas de
madeira castigando a carne dormente de frio, e mergulhado naquele
turbilhão, agora transparente pelo sol única testemunha daquela
pescaria da natureza, ao fundo poucos metros abaixo vi o corpo de
Ricardo lutando para vir à tona, quase podia vê-lo pronunciar
palavras de socorro com a garganta inunda de água e sal. Estendi
minha mão para tentar alcancá-lo, pude ver um esboço de sorriso do
amigo, mas a poucos metros de tocá-lo foi arrancado da minha visão
pela fera em alta velocidade, que fez meu corpo centrifugar várias
vezes antes de perceber a solidão agora completa.
Com os pulmões
estourando, nadei em busca de ar. Respirei como se fora o ar de uma
criança pós parto, a dor dos pulmões se enchendo e expulsando o
líquido salgado conseguia ser mais lancinante que dos cortes e
machucados por todo corpo. Já aceitara meu destino, nunca mais veria
o rosto de minha amada.
Agarrei-me a um resto de
prancha do casco e esperei que a fera viesse terminar sua caçada,
não sei quanto tempo se passou, minutos, horas, minha consciência
desfalecia e tornava repetidas vezes ainda insistindo em injetar
adrenalina buscando sobreviver. Foi quando a “coisa” retornou,
mas dessa vez não vinha em linha de ataque, arrastava com o focinho
algo pequeno totalmente emaranhado ao que restou de nossa rede de
anzois de pesca, aproximou-se o mais que pode e pude então perceber,
era um filhote morto que havia se enroscado em nossas iscas e na
potente malha da rede. Agora entendia tudo.
Mereciamos morrer.
O animal aproximou-se ao
ponto de me encarar profundamente com seus miúdos olhos, já não
tinha mais ódio ou a mesma fúria de antes, apenas podia sentir seu
lamento, sua perda, e agarrado ao fihote pelo emaranhado de linhas,
afundou lenta e definitivamente.
Meu mundo desapareceu.
Não sei quanto tempo se
passou, tampouco sonhos ou pensamentos voltaram a fervilhar em minha
mente, apenas lembro de sons de motores, apitos, vozes e línguas
estranhas. Lembro do frio dar lugar a um calor acolhedor. Da sensação
de estar novamente velejando, e de cobertas mornas e do cheiro forte
de éter, de bips e zumbidos mecânicos.
A próxima sensação não
podia ser real, uma mão macia e carinhosa deslizava pela minha face
e se enrolava em meus cabelos, para em seguida contornar meus lábios
e emanar daquela tez um cheiro que jamais imaginei voltar a sentir.
Sem abrir os olhos, pude
ver o verde de seus olhos, a transparência de sua íris, o calor de
seu colo, sonho ou não, sentia que estava salvo, pois o céu não
poderia reproduzir tamanha perfeição em dois planos diferentes,
estava de volta aos braços de Sofia.
gianovik
ps.: O poema é de Bertold Brecht
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