Hoje sentei-me à praça.
Noite fria, com partículas
de chuva “talenteando”1 os ares.
Caderno a mão, duas canetas
pra fugir da Lei de Murphy, uma ideia na cabeça e tempo para
desenvolvê-la. Por alguns instantes vi-me idoso, com os bolsos
cheios de petiscos a atirar aos pombos. Era noite, não poderiam
haver pombos, nem pombos daltônicos, sequer morcegos com essa dieta.
Poucas pessoas no ambiente, crianças com seus capuzes teleguiadas
por pais irresponsáveis insistindo em resfriar seus rebentos. Não
sabia exatamente o que iria fazer, se um desenho da cena, uma
caricatura climática ou um auto retrato parnasianista. Só sabia que
precisava mudar o ambiente, sair da austeridade do velho computador,
abandonar a sala, esvaziar a mente das velhas palavras que ainda
restavam impregnadas nas paredes, onde as vezes descolavam e por
afinidade se enredavam no caule dos pulsos. Sentia há algum tempo
mastigar as mesmas proposições e perfazer anátemas sobre o mesmo
conteúdo. Era necessário abrir as portas e deixá-las ir povoar
outros ares, vivificar ideias estereis, proliferar novos horizontes,
deixá-las livres da minha atração compulsiva.
Então na praça não seria
encontrado. Era um refúgio inesperado.
Pequenas poças refletiam os
holofotes halógenos a se olharem profundamente como narcisos. Vez ou
outra um casal passava apressado, desconfiado, como que seguidos de
perto por sombras.
Amores apressados, relações
desenfreadas por uma leve garoa. Imagino ao rugir das trovoadas o
ritmo que o desapego quase olímpico os sentenciaria. A chuva enfraqueceria a cola dos sentimentos, largariam as
mãos como papel de bala solto ao relento, se perderiam nas esquinas
em busca de abrigo, esboçariam mínimos remorsos com o abandono,
iriam esperar a tormenta cessar pra se apegarem a novas paixões de
verão, que se embotariam e perderiam a liga ao primeiro resfolegar
de umidade do inverno.
Mas minha atenção era
desviada vezes seguidas por uma linda garotinha aprisionada à saia
da mãe. Era um cordão umbilical improvisado, uma continuação
litúrgica da fidalguia humana. Elo de proteção, uma mecha de pano
a guiar nova vida pelas calcadas, desviar das valetas, dos espelhos
d'água, dos restos da humanidade descartados ao solo, como um cego
guiado por cão guia. Ela ia e vinha nesse cabo de guerra de um lado
ao outro. Toda vez que me fitava sorria, a caminhada era
sincronizada, nem mãe nem prole perdiam o compasso,
atravancavam-se ou derivavam a reboque.
E fez-me sorrir também.
E me senti ave recebedora
dos farelos daquele sorriso. Era visível então o que fazia naquele
lugar. Não estava a alimentar novos enredos ou fantasias dialéticas.
Não era senhor das linhas e traços nem arquiteto da comiseração alheia.
Estava a catar migalhas, como as aves dementadas no alvoroço das
sobras, cercando os humanos numa gritante empreitada por
sobrevivência.
Então vi que não havia a
menor necessidade de algo ser ditado. Alimentei-me daquele sorriso
por vagas duas ou três passagens, fechei o caderno, guardei uma caneta,
pedi licença à mãe e ofereci delicadamente a restante à criança:
- Escreva seu sorriso em um caderno. - Disse.
- E como se escreve um sorriso ?
- Do mesmo jeito que sorristes pra mim.
Eu não precisava nada
criar. Aqueles sorrisos já haviam escrito em mim e repovoado o
manancial interno.
gianovik
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