quinta-feira, 13 de junho de 2013

Riso Alado








Hoje sentei-me à praça.

Noite fria, com partículas de chuva “talenteando”1  os ares.

Caderno a mão, duas canetas pra fugir da Lei de Murphy, uma ideia na cabeça e tempo para desenvolvê-la. Por alguns instantes vi-me idoso, com os bolsos cheios de petiscos a atirar aos pombos. Era noite, não poderiam haver pombos, nem pombos daltônicos, sequer morcegos com essa dieta. Poucas pessoas no ambiente, crianças com seus capuzes teleguiadas por pais irresponsáveis insistindo em resfriar seus rebentos. Não sabia exatamente o que iria fazer, se um desenho da cena, uma caricatura climática ou um auto retrato parnasianista. Só sabia que precisava mudar o ambiente, sair da austeridade do velho computador, abandonar a sala, esvaziar a mente das velhas palavras que ainda restavam impregnadas nas paredes, onde as vezes descolavam e por afinidade se enredavam no caule dos pulsos. Sentia há algum tempo mastigar as mesmas proposições e perfazer anátemas sobre o mesmo conteúdo. Era necessário abrir as portas e deixá-las ir povoar outros ares, vivificar ideias estereis, proliferar novos horizontes, deixá-las livres da minha atração compulsiva.

Então na praça não seria encontrado. Era um refúgio inesperado.

Pequenas poças refletiam os holofotes halógenos a se olharem profundamente como narcisos. Vez ou outra um casal passava apressado, desconfiado, como que seguidos de perto por sombras.

Amores apressados, relações desenfreadas por uma leve garoa. Imagino ao rugir das trovoadas o ritmo que o desapego quase olímpico os sentenciaria. A chuva enfraqueceria a cola dos sentimentos, largariam as mãos como papel de bala solto ao relento, se perderiam nas esquinas em busca de abrigo, esboçariam mínimos remorsos com o abandono, iriam esperar a tormenta cessar pra se apegarem a novas paixões de verão, que se embotariam e perderiam a liga ao primeiro resfolegar de umidade do inverno.

Mas minha atenção era desviada vezes seguidas por uma linda garotinha aprisionada à saia da mãe. Era um cordão umbilical improvisado, uma continuação litúrgica da fidalguia humana. Elo de proteção, uma mecha de pano a guiar nova vida pelas calcadas, desviar das valetas, dos espelhos d'água, dos restos da humanidade descartados ao solo, como um cego guiado por cão guia. Ela ia e vinha nesse cabo de guerra de um lado ao outro. Toda vez que me fitava sorria, a caminhada era sincronizada, nem mãe nem prole perdiam o compasso, atravancavam-se ou derivavam a reboque.

E fez-me sorrir também.

E me senti ave recebedora dos farelos daquele sorriso. Era visível então o que fazia naquele lugar. Não estava a alimentar novos enredos ou fantasias dialéticas. Não era senhor das linhas e traços nem arquiteto da comiseração alheia. Estava a catar migalhas, como as aves dementadas no alvoroço das sobras, cercando os humanos numa gritante empreitada por sobrevivência.

Então vi que não havia a menor necessidade de algo ser ditado. Alimentei-me daquele sorriso por vagas duas ou três passagens, fechei o caderno, guardei uma caneta, pedi licença à mãe e ofereci delicadamente a restante à criança:


  • Escreva seu sorriso em um caderno. - Disse.
  • E como se escreve um sorriso ?
  • Do mesmo jeito que sorristes pra mim.



Eu não precisava nada criar. Aqueles sorrisos já haviam escrito em mim e repovoado o manancial interno.





gianovik




1  talenteando : licença poética





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